A história dos transplantes de órgãos e tecidos percorre a trajetória humana há cerca de 300 anos antes de Cristo, mas os primeiros procedimentos que obtiveram sucesso de fato, foram realizados a partir da década de 1960. Desde então, as técnicas evoluíram e os resultados têm contribuído para conceder e aumentar a qualidade de vida dos pacientes.
Mas apesar do constante aperfeiçoamento das tecnologias, a atuação do fator humano no processo ainda se encontra em evolução. No Brasil, assim como em outros países, a doação de órgãos e tecidos após o falecimento do paciente só pode ser feita com a autorização de parentes e, de acordo com o Ministério da Saúde, a recusa da família em permitir a captação ainda acontece em 43% dos casos.
Ações recentes de conscientização têm contribuído para a melhoria dos índices de doação, levando informações, tirando dúvidas e desconstruindo tabus entre a população. Mesmo com a alta porcentagem de recusa das famílias, os números estão melhores que no passado e, em 2016, foram contabilizados 14,6 doadores por milhões de pessoas no País.
Criado em 2013 pelo cirurgião cardiovascular brasileiro José Lima Oliveira Júnior, o movimento Setembro Verde é uma das ações que tem como objetivo inserir no cotidiano das pessoas a temática da doação de órgãos e tecidos. Durante todo o mês, atividades voltadas à conscientização da comunidade e capacitação de profissionais da saúde são intensificadas, sendo a cor verde o destaque em diversos monumentos e pontos turísticos brasileiros. As atividades culminam no dia 27, Dia Nacional da Doação de Órgãos.
E com o objetivo de informar e tirar dúvidas sobre o tema, a entrevistada do mês é a enfermeira Cristiane de Sá Dan, presidente da Comissão Intrahospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados (HU-UFGD).
Ela explica como se dá todo o processo de doação, desde o falecimento do potencial doador, até o contato com a família e os trâmites legais. Fala também sobre os tabus que circundam o assunto.
“Muitas famílias não permitem a doação por acreditarem que o corpo do doador sofrerá alterações ou ficará desfigurado. Mas isso não acontece. A cirurgia é como outra qualquer e após captados os órgãos e tecidos, o corpo é entregue aos familiares em boas condições para que seja procedido o velório”, afirma a profissional.
Confira a entrevista completa, realizada pela Unidade de Comunicação Social do HU-UFGD:
De acordo com a Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote), um único doador, após seu falecimento, é capaz de salvar mais de 20 pessoas. Quais os tipos de órgãos e tecidos podem ser doados após a constatação da morte encefálica do paciente? Quais são os critérios legais e assistenciais para que a cirurgia de remoção seja realizada?
Cristiane - A doação de órgãos e tecidos pode acontecer após a constatação de morte encefálica (ME) – que é a interrupção irreversível das funções cerebrais – ou em vida. No caso da ME, o doador poderá, sim, salvar ou melhorar a qualidade de vida de mais de 20 pessoas, podendo doar coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas, ossos, vasos sanguíneos, pele, tendões, cartilagem e córneas. Quando se recebe uma pessoa dentro da unidade hospitalar para tratamento de saúde, se tem como prioridade a vida desse paciente. Porém, se constatada a morte e for o desejo da família a doação de órgãos, se dá o encaminhamento legal, com autorização por escrito de um parente de primeiro ou de segundo grau, para a efetivação da doação. A realização do diagnóstico de ME é feita por meio de dois exames clínicos, realizados por médicos diferentes (sendo um deles neurologista), e um exame gráfico como a arteriografia, que pode comprovar que o encéfalo já não funciona mais. Se confirmada a morte encefálica e autorizada a doação pela família, são mantidos os recursos para a preservação das funções vitais dos órgãos. Em seguida, o hospital notifica a Central de Transplantes sobre um paciente com ME, que, por sua vez, solicita a confirmação do diagnóstico e inicia os testes de compatibilidade entre o potencial doador e os potenciais receptores em lista de espera. Quando existe mais de um receptor compatível, a decisão sobre quem receberá o órgão passa por critérios de prioridade, como tempo de espera e urgência. A Central de Transplantes, através de um sistema informatizado, gera uma lista de potenciais receptores para cada órgão e comunica as equipes de transplantes nas quais eles são atendidos. As equipes de transplante, junto com a Central de Transplante, adotam as medidas necessárias para viabilizar a retirada dos órgãos. Eles são retirados e transplantados no receptor, sendo o corpo devidamente recomposto e liberado aos familiares para os procedimentos fúnebres.
O que significa ser um “doador em vida”? Que órgãos e tecidos podem ser doados nessa situação e quais os requisitos para que uma pessoa faça a doação em vida?
Cristiane – Considera-se como doador vivo um cidadão maior de 18 anos, capaz juridicamente, e que legalmente possa doar órgãos ou tecidos sem comprometimento de sua saúde. O doador deve ser saudável e precisa ser avaliado por um médico para a realização de exames que descartem doenças que possam comprometer sua saúde durante ou após a doação. Legalmente, parentes até quarto grau e cônjuges podem ser doadores; não parentes, somente com autorização judicial e havendo compatibilidade sanguínea. Os órgãos e tecidos que podem ser doados em vida são: um dos rins, medula óssea, parte do fígado, parte do pulmão e parte do pâncreas, sendo os dois últimos apenas em situações excepcionais.
Por que as campanhas de conscientização para a doação de órgãos enfatizam que o pretenso doador comunique sua família, em vida, sobre seu desejo de doar? É possível que, mesmo após a manifestação do doador, os familiares não autorizem a remoção de órgãos e tecidos?
Cristiane - As campanhas são sempre voltadas a estimular as famílias a conversarem sobre a doação de órgãos. Isso acontece porque para ser doador não é necessário deixar nada por escrito, mas é fundamental comunicar à família o desejo da doação, pois são os parentes que vão autorizar ou não a captação dos órgãos após o falecimento. E em um momento difícil, como a perda de um ente querido, a família que tem conhecimento da vontade de seu integrante em doar os órgãos geralmente autoriza o processo.
Entre os fatores que contribuem para a negação familiar frente à doação está o receio de que a integridade física do paciente seja comprometida pela cirurgia de remoção de órgãos e tecidos. Existe algum risco de que isso ocorra? Como é o trabalho das comissões Intrahospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTTs) junto à equipe da unidade de saúde e aos familiares do paciente que se torna um potencial doador para que o procedimento se concretize?
Cristiane – Não existe esse risco. A retirada de órgãos é uma cirurgia como qualquer outra e o doador poderá ser velado normalmente, sem alteração de sua integridade física. Após a captação dos órgãos e tecidos, a equipe médica recompõe o corpo do doador, sendo visíveis apenas os pontos do local operado. O trabalho da CIHDOTT é acompanhar todo o processo, desde o início da identificação do possível doador até a entrega do corpo para a família depois da captação, garantindo que o processo seja organizado e que aconteça o acolhimento às famílias doadoras antes, durante e depois de todo o trâmite da doação no âmbito da instituição.
Dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) dão conta de que de cada oito potenciais doadores, no Brasil, apenas um é notificado. Apesar de nas últimas décadas a campanha pela doação ter se intensificado pela participação ativa de órgãos governamentais e entidades que atuam em prol da doação, o número de doadores e transplantes ainda é considerado incipiente. Para se ter uma ideia, por ano, pouco mais de 23 mil transplantes são feitos no País, chegando-se a 15 doadores a cada um milhão de habitantes. Em países como a Espanha, referência mundial em transplantes de órgãos, são 40 doadores a cada um milhão de habitantes. Ao que você acredita que se deve essa baixa adesão na realidade brasileira?
Cristiane – Realmente, são inúmeros os fatores que dificultam o processo de doação de órgãos no Brasil. Percebemos a necessidade de envolvimento, em todo o processo, do poder público, de instituições de saúde, de profissionais da área e da população. A recusa familiar, bem como a dificuldade em entender e aceitar a morte, muitas vezes se dá por falta de informações e a presença de tabus, e acaba prejudicando e dificultando todo o processo e a efetivação da doação de órgãos. A subnotificação dos casos, por falta de recursos humanos capacitados e a ausência de suporte logístico para realização dos exames complementares para o fechamento do diagnóstico de morte encefálica, são outros entraves encontrados para que aconteça a possibilidade de doação. Entendo que, além da estruturação do Sistema Nacional de Transplantes existente hoje no País, há a necessidade de ações voltadas para campanhas que abordem o tema da doação de órgãos, esclarecendo a população sobre dogmas negativos referentes ao assunto, bem como de projetos de capacitação e motivação para as equipes de saúde envolvidas em todo processo, para que o mesmo seja efetivo e possibilite salvar milhões de vidas.
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