Diante da pressão de investidores e do mercado financeiro pelo corte de gastos e de um pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, decidiu cancelar uma viagem que faria à Europa na próxima semana.
"A pedido do presidente Lula, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estará em Brasília ao longo da próxima semana, dedicado aos temas domésticos", informou o Ministério da Fazenda, por meio de nota.
Haddad embarcaria nesta segunda em uma viagem que passaria por Paris (França), Londres (Reino Unido), Berlim (Alemanha) e Bruxelas (Bélgica), onde se reuniria com autoridades e conversaria com investidores.
Cortes de gastos
A equipe econômica do governo tem se debruçado nas últimas semanas sobre uma agenda que vem sendo cobrada por investidores e setores da política desde o começo do governo do presidente Lula: o corte de gastos públicos.
Por enquanto, as medidas em estudo ainda não foram detalhadas, o que tem gerado nervosismo no mercado financeiro — com pressão sobre o dólar, queda da Bolsa de Valores e alta dos juros futuros.
Nos últimos dias, Haddad defendeu que entende a "inquietação" do mercado, mas acrescentou que o governo apresentará propostas para manter o arcabouço fiscal operante. A expectativa é que as medidas sejam apresentadas nas próximas semanas.
"A dinâmica das despesas obrigatórias tem que caber dentro do arcabouço. A ideia é fazer com que as partes não comprometam o todo que o arcabouço tem, a sustentabilidade de médio e longo prazo", declarou Haddad, nesta semana.
Haddad: Houve entendimento sobre medidas de corte de despesas; Bruno Carazza comenta
Surgiram notícias de que o governo estaria considerando mudanças no seguro desemprego e na multa de 40% de demissão sem justa causa, algo que foi negado pelo Ministério do Trabalho.
O ministro Luiz Marinho ameaçou até deixar o cargo caso se sinta agredido, ou seja, na hipótese de mudanças serem encaminhadas sem discussão prévia com ele.
Economistas consideram a agenda de cortes de despesas importante para conter a dívida e evitar alta dos juros, que penalizam investimentos produtivos e o consumo da população. Por outro lado, um manifesto critica o mercado e as políticas de austeridade fiscal (veja abaixo essa reportagem).
O que pode acontecer sem o corte de gastos?
A explicação de analistas é que, sem o corte de gastos obrigatórios (por meio do envio de propostas ao Congresso Nacional), o chamado "arcabouço fiscal", a nova regra para as contas públicas aprovada no ano passado pelo governo Lula, está em risco.
Isso porque o espaço gastos livres dos ministérios, que englobam políticas públicas importantes, como bolsas de estudo, fiscalização ambiental e o farmácia popular por exemplo, está sendo comprimido (e pode acabar no futuro próximo) por despesas obrigatórias, como a Previdência Social.
E a previsão do TCU é que, se nada for feito, o espaço para essas políticas importantes para a população, acabarão nos próximos anos, paralisando a máquina pública.
Com o arcabouço fiscal em risco, podendo ser abandonado, não haveria mais uma regra que controlasse as contas públicas, o que, por sua vez, elevaria mais a dívida do setor público, que já é alta para o padrão dos países emergentes.
O próprio Banco Central cita o aumento de gastos em seus comunicados, explicando que isso também pressiona a inflação.
Segundo a instituição, a "percepção mais recente dos agentes de mercado sobre o crescimento dos gastos públicos e a sustentabilidade do arcabouço fiscal vigente, junto com outros fatores, vem tendo impactos relevantes sobre os preços de ativos [dólar, juros futuros e bolsa de valores] e as expectativas [de inflação]".
Essa dúvida sobre as contas públicas, que está sendo chamada pelo mercado financeiro de "risco fiscal", já está cobrando seu preço, com alta do dólar e dos juros futuros.
Com o possível fim do arcabouço fiscal, explicam analistas, a pressão poderia ser maior ainda sobre os juros futuros, aqueles que servem de base para as operações dos bancos, o que resultaria em taxas mais elevadas para consumo e investimentos.
E juros mais altos, por sua vez, também piorariam as contas públicas, pois o Tesouro Nacional precisaria pagar taxas maiores na emissão de títulos públicos, a chamada rolagem da dívida.
O governo entraria no que os analistas chamam de um "ciclo vicioso", ou seja, paga juros maiores por conta da dívida alta, o que também elevaria ainda mais o endividamento - que já grande para o padrão de países emergentes.
Ajuste 'necessário e urgente'
De acordo com os economistas Armando Castelar Pinheiro e Silvia Matos, em análise contida no boletim Macro de outubro da FGV Ibre, o ajuste nas contas públicas é "necessário e urgente".
"Desde o final de 2022, o Brasil vem experimentando uma sensível deterioração fiscal, com forte aumento dos gastos e persistente elevação da dívida pública. Isso sem que sejam adotadas medidas capazes de dar resposta adequada aos riscos daí decorrentes", diz o boletim.
"Pelo contrário, o que se viu foram sucessivas propostas de mais e novos gastos, como se o problema não existisse", prosseguem os economistas.
Com a persistência do problema, eles avaliaram que o "risco fiscal" (relativo às contas) voltou ao centro das atenções dos agentes de mercado.
"E passou a fazer preço, como se diz, com a forte elevação da curva de juros e a desvalorização do real, mesmo com o ciclo monetário no Brasil [com alta de juros] indo na contramão do que se observa hoje nos EUA", afirmaram.
Afirmam que a "piora do humor internacional", com notícias negativas sobre as eleições nos Estados Unidos e sobre a economia chinesa, ajuda a explicar a piora na curva de juros e a alta do dólar.
Mas observaram que isso tem acontecido apesar de a agência de classificação de risco Moody’s ter elevado a nota de crédito soberano do Brasil (o que, em tese, deveria melhorar os indicadores).
"Mesmo com sinais de desaceleração do gasto e de menor estímulo fiscal, estamos vivenciando uma nova rodada de desconfiança dos agentes de mercado. Diversas manobras fiscais e a ausência de contenção de gastos abalam a credibilidade", dizem os analistas, no texto.
Armando Castelar Pinheiro e Silvia Matos, do FGV Ibre, concluíram que a "grande dúvida" é saber se haverá apoio político para tais medidas.
"Infelizmente, revisões sobre a regra de reajuste do salário mínimo e a desvinculação das aposentadorias, pensões e BPC do mínimo foram descartadas. E essas são medidas que dariam um impacto relevante na trajetória de gastos ao longo do tempo. Resta saber o que de fato será apresentado e aceito do ponto de vista político", afirmaram.