Em crônica escrita na semana passada, demonstrei o meu entusiasmo em relação à solidariedade internacional verificada quanto à tragédia que abalou o Haiti. Em conseqüência, recebi muitos e-mails, como nunca antes recebera sobre uma mesma crônica. Hoje pretendo abordar algumas questões políticas subjacentes à ajuda que, de certa forma, mesmo que parcialmente, respondem aos comentários dos leitores. Antes, porém, um pequeno recuo ao passado não tão distante.
No final dos anos 60, a ditadura militar implantada em 64 consolidava-se usando, de um lado, da repressão aos seus contrários e, de outro, de intensa propaganda massificando a ideia de um Brasil grande, prestes a transformar-se em potência mundial.
Nessa época, eu cursava a graduação em história e, dentre os meus professores, um deles, Paulo Henrique da Rocha Correa, talvez por comungar as mesmas ideias do governo militar, defendia as suas teses imperialistas. Em dois de seus livros, “o Brasil e as Guianas” e “Fronteiras do Brasil”, defendia a anexação ao Brasil do Uruguai (antiga província brasileira, então chamada Cisplatina), do Paraguai e das Guianas (sendo que a Francesa já fora brasileira).
Era uma época em que a Geopolítica era disciplina importante e estudava-se, por exemplo, a importância estratégica de Gibraltrar, Ilhas Malvinas, Cuba, Suez, Panamá. Também a tese de que população e extensão seriam sinônimos de poder, era defendida por esse professor que não passava uma aula sem que nos alertasse para o “perigo Amarelo” (referindo-se principalmente à China, pela sua extensão territorial e densidade populacional).
Minha turma repugnava essas teses. Éramos anti-imperialistas e, por via de consequência, antiamericanos. A própria ditadura militar implantada no Brasil, de certa forma era consequência da estratégia geopolítica norteamerica de não permitir uma outra Cuba nas Américas. Vivíamos a Guerra Fria, imagine um país com as dimensões do Brasil aproximando-se do Bloco Soviético?
Passados os 21 anos da nefasta ditadura e mais 25 anos da democratização, o Brasil encontra-se em vias de tornar-se uma grande potência, dessa vez de verdade. Dessa forma, algumas atitudes governamentais parecem-nos estranhas. Por que haveria o Brasil de agraciar o Paraguai com três caças tucanos? Por que haveria de conceder um reajuste significativo ao preço da energia de Itaipu?
Por que haveria de fazer tantas concessões nas relações comerciais com a Argentina? E as concessões à Bolívia? E a firme, embora frustrada, tentativa de manter Zelaya na presidência de Honduras? Por fim, mas não que os exemplos se esgotem, por que trombar com os Estados Unidos no caso da ajuda ao Haiti?
Simples: sendo uma grande potência, a diplomacia brasileira age como tal. Não se trata de imiscuir-se em assuntos alheios. As coisas acontecem naturalmente. Israel e Irã, países antagônicos, ambos vieram buscar intermediação brasileira. Obama chamou Lula de “o cara”. O mais conhecido jornal francês, “Le Monde”, escolheu o presidente brasileiro como “o homem do ano” e o Fórum Econômico Mundial elegeu o presidente brasileiro “estadista mundial”.
No entanto, existe um “mas”, uma conjunção adversativa que sempre se faz presente. Mas, enfim, se o Brasil consolida-se como potência econômica, não se pode dizer o mesmo em termos militares. Aeronáutica, Exército e Marinha, que constituem as nossas Forças Armadas, somente tiveram certo poder de fogo em relação aos nossos vizinhos, na época Imperial. Em decorrência dessa contradição entre poderio econômico e militar é que o Brasil está comprando caças e submarinos.
Pode soar estranho que o Brasil esteja se armando, devido sua história pacifista, no entanto é isso: é usual as potências econômicas se armarem para defenderem os seus interesses.
Armamo-nos a princípio para nos defender. Mas, governos mudam. Mudam também as circunstâncias.
Antes do terremoto, por exemplo, o Brasil estava no Haiti comandando uma força de Paz da ONU (Minustah). Estávamos orgulhosos de nossa postura e o mundo todo nos elogiava pela maneira como os nossos soldados conduziam a reconciliação daquele povo tão sofrido. Subjacente ao nosso jeitinho brasileiro de fazer as coisas, tínhamos a intenção de mostrarmo-nos capazes de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
De repente a tragédia, os Estados Unidos agiram rapidamente: assumiram o controle do aeroporto, desembarcaram suprimentos e militares. Tenho dúvidas se algum outro país poderia ter feito melhor. Mas, novamente o mas, no Haiti estão soldados e bombeiros de dezenas de países, todos submetidos à Minustah, ou seja, à ONU. Por que os Estados Unidos vão entrando e logo tomando conta? Essa é a bronca da guarnição e da embaixada brasileira.
Mas qual é a nossa? Encarar os Estados Unidos? Mesmo que tivéssemos imediatamente à nossa disposição dez vezes mais caças e submarinos do que agora estamos encomendando não daríamos conta desse recado. Então devemos nos preparar para o futuro e igualarmos-nos militarmente aos Estados Unidos à medida que eles vivem franca decadência econômica e nós temos perspectivas promissoras?
Seria possível duas super-potências nas Américas? Ou precisaremos que uma destrua a outra? “Delenda Cartago est” dizia Cícero, e Roma destruiu mesmo Cartago para ser o Império que foi.
Haverá uma Terceira Guerra Mundial? As Américas se unirão à Europa para enfrentar o poderio Chinês? A África cansada de sofrimentos estará de que lado?
É difícil resumir em uma crônica o que talvez comportasse várias teses. Mas, em conclusão, desejo dizer que: a) da mesma forma como condeno o imperialismo norteamericano, sou também contrario a qualquer manifestação de imperialismo brasileiro; b) O Brasil não pode meter o carro na frente dos bois e desejar ser potência militar sem que seja ainda sequer uma das três maiores potências econômicas da Terra; c) a disputa entre Estados Unidos, Brasil e ONU é indigna para o nosso século 21; d) a destruição do Estado Haitiano (com participação determinante dos Estados Unidos) foi muito mais perniciosa que o próprio terremoto, porque se as instituições do Haiti estivessem fortes, quiçá nem precisassem de tanta ajuda internacional, haja vista o Katrina nos Estados Unidos, guardadas as devidas proporções; e) O Brasil precisa continuar perseguindo tenazmente a sua vocação pacífica, e sendo potência, deve servir de exemplo ao mundo, ajudando a fazer do século 21 o SÉCULO DA PAZ.
É altamente positiva a participação internacional na recuperação do Haiti naquilo que diz respeito à solidariedade que vem sendo prestada. Que a globalização se dê dessa maneira, com a consciência de que somos uma única raça: a raça humana.
Suas críticas são bem vindas: biasotto@biasotto.com.br
Wilson Valentim Biasotto *
* membro da Academia Douradense de Letras; prof. Aposentado CEUD/UFMS