Nas últimas décadas a influência da Igreja Católica sofreu uma redução substancial entre os argentinos. O número de ateus e agnósticos cresceu de forma acelerada. Simultaneamente, aumentaram os integrantes de igrejas evangélicas. Mas, dentro do próprio catolicismo, também consolidaram-se cultos a santos "populares", "não-oficiais", como o Gauchito Gil e a Defunta Correa.
A cúpula da Igreja Católica não reconhece estes santos no "panteão" oficial dos santos canonizados pelo Vaticano, já que para isso seriam necessários dois milagres confirmados, verificados por doutores em teologia e outros especialistas do ramo certificados pela Santa Sé. O segundo e terceiro escalão do clero geralmente encaram os cultos como "manifestações de intensa fé". Mas, tentam conduzir os fiéis para o culto de santos ‘autorizados’.
Estes santos populares tiveram - todos - mortes trágicas. São falecimentos de elevado sofrimento, que fazem que os fiéis considerem que foi uma espécie de visto imediato para um passaporte que limpa os mártires de todos seus pecados e os coloca em contato direto com Deus.
De quebra, são santos "locais", isto é, uma espécie de encarregados diretos, encarados como se fossem divindades com menos serviço do que os santos ou virgens de alçada mundial. Desta forma, o milagre solicitado deveria - teoricamente - ser concedido (se for o caso) de forma mais rápida. Uma espécie de "atalho" entre a pessoa que solicita um milagre e o alvo do pedido, isto é, Deus.
As lendas indicam que estes santos não-oficiais possuiriam maior ‘percepção social’ do que seus congêneres europeus e compreenderiam melhor eventuais "debilidades", como a de roubar por necessidade.
Enquanto que não seria adequado solicitar ajuda celestial a um santo como são Francisco, são Miguel, santa Teresa ou as Virgens de Covadonga, Fuencisla ou Lourdes para ter sucesso em um eventual roubo com o qual poderá saciar a fome de sua família, a pessoa em questão sim poderia pedir ao Gauchito Gil um respaldo santificado nessa empreitada.
No entanto, o gauchito condenaria e puniria um roubo por cobiça. A "Difunta", além de ajudar as pessoas, castigaria aquelas que se comportam mal.
O culto a alguns santos populares, que no final do século XIX ou na primeira metade do século XX estavam restritas a suas áreas originais de influência nas pequenas cidades do interior da Argentina, começaram a expandir-se para as grandes cidades do país.
Desta forma, atualmente é comum ver taxistas com estampas do Gauchito Gil ou comerciantes com uma foto do altar da cantora Gilda (falecida de forma trágica em um acidente na estrada) ou do cantor Rodrigo Bueno (também falecido em um acidente) ao lado da caixa registradora.
'San La Muerte' é outra das figuras que integram a equipe de assistentes celestiais que encurtariam o caminho entre aqueles que pedem milagres e os céus.
No entanto, o Gauchito Gil foi mais além que seus colegas do panteão dos santos extra-oficiais e já conta com um grupo no Facebook.
A Defunta Correa. Estátua em seu principal santuário.
A DEFUNTA
Deolinda Correa, mais conhecida como "La Difunta Correa" (A Defunta Correa), era a mulher de um homem que foi obrigado a engajar-se em um dos exércitos que protagonizavam a miríade de guerras civis que assolavam a Argentina nas primeiras décadas do século XIX.
Deolinda tentou seguir a trilha dos soldados que haviam levado seu marido. Mas, carregando seu bebê nos braços, perdeu-se no meio de uma área desértica. Esgotada, sentou-se no chão e morreu de sede.
Dias depois, um grupo de gauchos passou por ali. Os homens viram o corpo sem vida de Deolinda. E, em seus braços - diz a lenda - estava seu bebê, que ainda mamava dos seios cheios de leite da mãe morta. A criança foi resgatada pelos gauchos, que ficaram impressionados com a cena.
Gradualmente, os gauchos que nos anos seguintes passavam por ali, começaram a deixar garrafas d’água para sacia a eterna sede da ‘Defunta’ Correa. No final do século XIX a peregrinação até o lugar começou a ficar intensa. O fenômeno consolidou-se no século XX.
No início ela era procurada para realizar milagres de saúde, além de proteger os viajantes. Mas, no meio da série de crises que afetaram a Argentina nas últimas décadas, a ‘Difunta’ passou a ser requerida para estas áreas.
Gauchito Gil teria 'sensibilidade social',afirmam seus seguidores
GAUCHITO GIL
Antonio Mamerto Gil Núñez, que entrou para o panteão extra-oficial dos santos argentinos com o nome de "Gauchito Gil", era um jovem gaucho que - segundo a lenda - comportava-se como uma espécie de "Robin Hood" local, roubando dos ricos para dar dinheiro às pessoas que passavam fome. No entanto, as autoridades da região, na época, o consideravam um gaucho briguento e ladrão.
Este gaucho, misto de bandoleiro e benfeitor, com o início da guerra do Paraguai (1865-1870), foi recrutado pelo Exército. Gil fugiu e tornou-se desertor. Outras versões indicam que não desertou e que também participou de uma guerra civil interna em sua província. No meio desse segundo conflito bélico, teria tuido uma visão, enquanto dormia, do deus guarani Ñandeyara, que lhe ordenou "não derramar sangue dos irmãos". Nesta segunda versão, Gil teria desertado dessa guerra civil.
Após desertar, dedica-se à uma vida de "Robin Hood". Nas pausas, aproveita para participar de festas e bailes.
Anos depois, foi encontrado pela polícia. Não tentou resistir, obedecendo a ordem de Ñandeyara.
Depois de uma longa sessão de torturas no meio do campo, os policiais penduraram Gil de um "algarrobo" (uma árvore de madeira muito dura) de cabeça para baixo.
Um dos policiais ergueu o punhal e preparou-se para cortar o pescoço de Gil. Nesse instante, o gaucho murmurou: "seu filho está muito doente. Se você rezar para ele, a criança viverá. Caso contrário, morrerá".
Gil também teria dito que, quando o policial voltasse para o vilarejo de Mercedes, além de saber da doença do filho, também ficaria sabendo que as autoridades haviam indultado o foragido. "Você vai derramar sangue inocente, por isso, reze para mim para que eu interceda perante Deus nosso senhor pela vida de seu filho...o sangue dos inocentes costuma servir para fazer milagres", disse o prisioneiro.
O policial ignorou as afirmações do prisioneiro e o degolou. Poucas horas depois, de volta a seu vilarejo, o policial foi informado que seu filho estava profundamente doente. Desesperado, o policial rezou a Gil para que salvara a criança. Segundo a lenda, o recentemente executado desertor salvou o menino desde o além. Agradecido, o policial enterrou Gil com as correspondentes honrarias cristãs e ergueu um santuário para ele.
Desta forma, é o caso de um santo popular cujo culto iniciou no dia seguinte à sua morte. E de quebra, seu primeiro devoto é o próprio verdugo.
Diplomaticamente, perante o crescente culto do Gauchito Gil, em 2006 o bispo Ricardo Faifer, bispo da cidade de Goya, perto de Mercedes, o definiu como "um irmão falecido que, acreditamos, está perto do Criador".
O santuário, nas vizinhaças da cidade de Mercedes, na província de Corrientes, é objeto de peregrinações permanentes, para irritação da cúpula da Igreja Católica, que considera que seu culto é "pagão". A data em que o Gauchito é mais intensamente celebrado é o 8 de janeiro, dia que teria marcado seu sacrifício.
Mas, apesar de sua morte em 1874, seu culto só tornou-se nacionalmente intenso nos últimos 30 anos, época em que a Argentina mergulhou de crise em crise econômica.
Na província, que é vizinha ao Rio Grande do Sul, a peregrinação ao santuário do Gauchito Gil, em média de 130 mil pessoas no dia 8 de janeiro, só é ultrapassada pela romaria realizada na Basílica de Itati, onde está a imagem da Virgem de Itatí.
O Gauchito Gil é retratado como um gaucho jovem, de cabelos longos e rebeldes que caem sobre os ombros, bigode e ‘boleadoras’ nas mãos. Atrás dele, costuma aparecer uma cruz. Se não fosse pela ausência da barba (somente possui o bigode) e a vestimenta gauchesca (e as boleadoras), sua figura poderia ser confundida com a iconografia costumeira de Jesus Cristo.
Entre todos os santos populares, o culto do Gauchito Gil é o que mais teve repercussões artísticas, tanto em formato de canções, filmes, peças de teatro, além de repentistas.