Confesso que me entusiasmei com a solidariedade universal verificada logo após a tragédia sísmica que envolveu o Haiti. E não foi pura e simplesmente solidariedade enquanto manifestação desse sentimento próprio da natureza humana, em que as pessoas, diante de tragédias, mesmo que inconscientemente, reconhecem-se como iguais; mas solidariedade institucional, de estado para estado. Aviões de todos os continentes pousaram em Porto Príncipe, com equipes de resgate, água e alimentos.
Não tenho a menor idéia de como os haitianos sentiram essa solidariedade, se é que em meio a tamanha desgraça, há tempo para alguém pensar em alguma coisa. Um povo pobre, o mais pobre das Américas, vivendo em um Estado cujas instituições estão praticamente falidas, necessitando de monitoramento da ONU para tentar (re)erguer-se, naturalmente fica muito mais vulnerável em relação à tragédia, que, evidentemente, um Estado organizado, com instituições em funcionamento pleno. Mas, de alguma forma o movimento altruísta há de ter influído na conduta daquele povo, há de ter alimentado uma chama de esperança de que nem tudo estava perdido, há de ter refreado o recrudescimento de instintos primitivos de luta pela sobrevivência.
Não fora essa imediata ação internacional, penso que seria inimaginável o que poderia ter acontecido no Haiti. Veio-me à mente uma obra de ficção escrita em 1954, por William Golding, intitulada “O Senhor das Moscas”: um avião, cujos passageiros eram jovens, caí em uma ilha deserta, verdadeiro paraíso. A tripulação morre, os jovens ficam sós. No inicio tentam se organizar escolhem um líder, fazem coletas de frutos, socorrem uns aos outros; no final instala-se a barbárie, boa parte das crianças tornam-se cruéis e na luta pela sobrevivência e pelo poder, perseguem-se, ferem-se, matam-se entre si.
Contrariamente a Robinson Crusoé que de certa forma civiliza a natureza, as crianças de “O Senhor das Moscas” barbarizam aquela ilha edênica onde caíram.
Reflexões dessa natureza nos levam a retomar com certa frequência uma dúvida já tão debatida em clássicos iluministas: o homem é bom e a sociedade o perverte, ou a sociedade molda o comportamento humano tornando-o civilizado? Em outras palavras: como seria o ser humano não fossem as regras sociais estabelecidas ao longo dos últimos milênios?
Mas, deixemos a ficção, quem leu “Os sobreviventes dos Andes” ou “Papillon”, histórias verdadeiramente acontecidas, poderá lembrar-se perfeitamente de que quando a fome aperta, o canibalismo não é descartado.
E eis que, enquanto nos deparamos com o sofrimento dos haitianos e com a concomitante solidariedade internacional, recebo um e-mail que me ensina como retirar uma rolha de dentro de uma garrafa. No vídeo, um cidadão força a penetração de uma rolha em uma garrafa, depois enrola um saquinho plástico em forma de canudo e o enfia na dita garrafa, mexendo-a a seguir de tal modo que a rolha desliza para a proximidade do gargalo e fica entre o vidro e o canudo. Ato seguinte, o cidadão assopra pela boca do saquinho plástico e assim que o infla, puxa-o trazendo consigo a rolha que estava dentro do recipiente.
Ah! imagino eu com os meus botões: enquanto houver tamanha criatividade humana, não haverá miséria no mundo. Pouco importa se os Estados Unidos, arrogantes como sempre, assumiram o controle do tráfego aéreo em Porto Príncipe, alguém tinha que fazê-lo diante do caos que se instalara. Ah! mas aí é uma questão geopolítica, os Estados Unidos estão protegendo os seus interesses, dirão alguns, e não solidariedade.
E, não obstante o show que os brasileiros estão dando na (re)organização haitiana, sem uso da violência, não faltou quem dissesse que o Exército brasileiro está no Haiti para preparar-se para enfrentar conflitos nas nossas favelas e não por questão humanitária.
A exemplo da marchinha do início dos anos 60, “deixam que digam, que pensem, que falem”, o mundo está bem melhor e vai melhorar ainda muito mais à medida que os povos forem elevando o seu nível civilizatório a ponto de concluírem que é possível tirarmos a rolha da garrafa sem quebrarmos nenhuma das duas.
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* da Academia Douradense de Letras; professor aposentado CEUD/UFMS