Reitor da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Jones Dari Goettert, destacou a obra Usina, escrita pelo jornalista, radialista, apresentador e cerimonialista Antônio Carlos Ruiz, lançado em junho deste ano durante a 4ª edição da Feira de Literatura, realizada na Câmara de Dourados.
O livro contém 139 páginas com diversos poemas que, segundo Goettert, o envolveu pelo que aparenta ser o mais simples.
“Fui envolvido, em Usina, por aquilo que pode ser o mais simples, como as coisas de um caminho, de uma casa, de um lugar”, escreveu.
Jones Dari escreveu para o autor da obra para falar sobre o livro, Usina - Foto: Arquivo/Dourados News
O relato feito pelo reitor foi enviado ao autor através de uma carta, com várias menções sobre o livro.
Para Jones, os textos levam a uma viagem que se sobressai em meio ao mundo que vivemos atualmente, leia abaixo na íntegra.
“Quando li o título do livro, pensei: “será a usina velha de Dourados?” Não, não era, não é...Como escrevi acima, impactou-me uma poesia-território que se sobressai em meio a um mundo inteiro, às vezes, um mundo tão monolítico, tão o mesmo do mesmo...Nos pedaços que sublinhei, também acima, me chega uma poesia da vida que é sempre também um lugar, um território, um tempo: a guavira, a casa, o caminho”, cita sobre a obra, seguindo: “assim, se tudo aqui fosse um pedido, ele seria mais ou menos assim: “continue ajudando-me a viver territórios cada vez mais parecidos com a vida, seja a vivida, seja a inventada”. Obrigado!
Usina é a terceira obra de Antônio Carlos Ruiz. Antes, havia lançado ‘Senhora Velha’ e a ‘Rua dos Ipês’. Ele também faz parte da ADL (Academia Douradense de Letras) e membro do Novo Movimento Poético de Dourados.
Confira a carta na íntegra:
Livro foi lançado durante evento realizado na Câmara de Dourados em junho - Foto: Divulgação
Caro Antonio Carlos
Uma geografia no meio do mundo
(ou pequenas considerações sobre “Usina”)
1.
Sim: “Meu corpo [...] Meu sangue [...] Meu abraço [...] Minha poesia usina”, tudo usina... (“Usina”, pág. 15) Usinando, dá forma ao que é ainda pré-forma, pro forma, às vezes ainda até sem forma alguma. É interessante, assim, como toda uma geografia (ou uma “pré-geografia”, um “proto-espaço”) parece condição a priori – corpo e sangue – para um ato – abraço – ou um devir – poesia. É razoável pensar que ambos – ato e devir –, em “Usina” (logo no primeiro poema deste livro de mesmo nome – Usina) deem a entender que a expressão poético-literária mais intensa seja, justamente, aquela na qual territórios são seus suportes ou pressupostos – se estendendo por todo o livro.
É o que sinto...
Em “Caminhos” (e veja que toda geografia, ou todo território, é também feita/o de caminhos, estradas, trilhas, atalhos...), “Acima do caminho, / ipês que floriram uma rua... / No fim do caminho, uma estrada, / uma casa de madeira, vagalumes faceiros...” (pág. 20). Caminhos assim (d)escritos só podem vir à tona por quem caminhou ou caminha neles, sentindo ipês, uma estrada... e como certo aconchego de nossa infância, uma casa de madeira, aquela onde até hoje, quando revisitada (pelos passos ou mesmo pela memória...). sabemos exatamente onde a tramela de cada porta se esconde.
Outro caminho é percorrido em “O trem e o menino” (pág. 82-84): “Trilhos amontoados preenchiam / o espaço vazio da Noroeste do Brasil. [...] Bolivianos, brasileiros, turistas, estudantes, / trabalhadores, todos ao mesmo tempo / jogando conversas fora. / De repente, em um vai e vem pra lá e pra cá, / como um balé, surge ele, tão esperado trem do / pantanal, cortando a cidade morena, / rumo a cidade branca. / [...] A escuridão toma conta da Noroeste / [...] Pra beber, a gelada de sempre, ao som do narrador / paulistano-argentino, José guerreiro... / [...] Tatau entoava Noche de ronda e outros tangos, / enquanto o balanço do trem nos guiava a Corumbá. / [...] Gente que reclama, que sorri, criança que chora, / tudo novidade para quem brinca de viver. / [...] Puerto Quijaho, feira Boliviana, Corumbá, / Ladário, um mistério para o menino de olhos / brilhantes, que iniciava a paixão pelo rádio”...
A poesia parece pouco ou nada ligar (e nem precisa...) para intrínsecas contradições: como um “espaço vazio” poderia existir com tantas gentes, tantas conversas, tantas danças, cidades multicores, a noite e uma cerveja, um canto, muitos cantos, vozes de timbres e emoções várias, coisas estrangeiras, mistérios, paixões...? Repito: será, seria mesmo um “espaço vazio”? Caminhos vazios, como? Esta é também, parece, uma “função” da poesia: dizer, não dizer, desdizer, “re-dizer”, assim como a vida é, não é, é e talvez não seja, não é e talvez seja, em um movimento de “e, e, e, e, e...” (e assim dificilmente uma “ditadura” de “ ou, ou, ou...”).
A poeta, o poeta, é indubitavelmente, por isso, viajante, andante, caminhante. E essa, digamos, “característica”, é que permite descrever o caminho e suas coisas, como um “beijo sabor guavira” (“Minha loucura”, pág. 26) ou do que chega de uma “Doce memória” (pág. 28): “Nada de flashback, sem mares, rios, pântanos, / morros, terras brancas ou vermelhas. / De ontem, somente a doce guavira colhida. / Madeiras históricas da minha casa. / Ipês de todas as cores de minha rua”... Novamente, terras coloridas, a doce guavira, a minha casa, ipês e – vejamos só – a minha rua: um caminho, pois não?
E a insistência, de novo, em caminhar, em “Minha estrada” (pág. 30), “que me leva até o campo, guaviral nativo, / [...] frio de junho, vento de agosto”! Mas se ainda o vento é hoje cada vez mais constante e cortante nas terras de um “guarival nativo”, já são poucos os lugares por onde no passado os caminhos da guavira se faziam a cada caminhar, a cada andança das crianças a colher nos campos a fruta pequena, doce... Onde estão os guavirás, as guaviras, agora? Onde?
Teria um “espaço divino” sucumbido junto com o “Divino tempo” (pág. 48), aquele do “Tempo de plantar, / ipês férteis [de] cores, guavira no campo, / fruta do conde nas rodovias”?
E agora, onde estaria “Um pé de manga”, “Um pé de amora”, “Um pé de jabuticaba”, “Um pé de café”, “Um pé de jasmin”, do encontro em poema “Nós dois” (pág. 61)? Se é que, neste agora, hoje, na ausência de pés de tudo, é ainda possível um “nós”, um “dois”, um “muitos”?
Há ainda espaço para uma poesia em “Cachoeira” (pág. 112) d’onde “[...] guavira que cresce, / [...] a poeira que sobe, / fumaça se espalha”, assim, tudo junto, ou se agora é apenas a fumaça a “des-poetizar” – como já vimos antes – a guavira, e mesmo a poeira de uma terra vermelha soprada no mês de agosto?
Uma poesia que também caminha em “Rios” (pág. 68), em “Minha alma voa, rio Amambai, / Paraguai, Murtinho, / Corumbá, todas as Quedas. / [...] Madrugadas, / Douradas, amadas, / vagalumes viajantes, / Ardentes encontros, desencontros”... Rios que, antes, desenhavam a geografia, agora, pontes monocultoras desfazem tanto barrancos quanto peixes, e as águas de antes já não são as mesmas de hoje. Por isso, também parece, “O fogo” (pág. 100) tenha sumido “Dos curupiras”, quando e onde, em “Matilhas” (pág. 101), “Fere o fogo, [...] Estradas vazias, [...] O pantanal, o mangue, / [...] O meio do Mato”: qual o mato onde ainda curupiras andam para um lado e suas pegadas mostram para o outro? Onde?
Assim, nessa usina de transformação de tudo, onde – repito – encontrar ainda “Curupira” (pág. 34), será “[...] no balé do beija-flor, na garoa fina que / cai, na brisa mansa que vem do rio Paraguai”? Qual balé, qual garoa, qual brisa... qual rio Paraguai?
Uma poesia, assim, que olha dentro dos “Olhos” (pág. 58), dos “Olhos para a menina, primeira paixão de escola”, daquela paixão que ainda segue na gente, de uma menina que já não é mais, de nós que não somos mais, do mundo que já não é mais... De um tempo/espaço que não é mais, sem dons ou com “Sete dons!” (pág. 70), daqueles no qual “Brota a magia das escritas, dar nome as estrelas, / flerte com a lua, até brincar na chuva, / pra de novo ser criança”. Não: a poesia também é saudade e também machuca, porque ninguém será criança de novo, nem mesmo “o vento que venta” será o mesmo vento (“Abraços decolores”, pág. 115).
Mas talvez ainda tudo seja vida no “Carnaval” (pág. 94) do “Pantanal, / Corumbá”, apenas, talvez, pois a própria “raiz [de] um pé de ipê” sumiu não porque a “Musa do circo” (pág. 132) se foi, mas porque se foi mesmo o circo todo... Talvez ainda seja possível porque um território chega para “O menino [que] brincava de bola de gude”, mesmo que “O vento levou sua pipa, [depois] trouxe tempestades” (“O menino”, pág. 139).
Até por isso, quem sabe, o “in-verso” dos versos d’o”Coração” (pág. 129) pode parecer agora o suficiente: “O que é o coração, / [...] Não importa a cidade, a região, / a classe social, coração é imparcial, / antirracial, antiviral, / coração é paz. / É incapaz de falar em divisões, / intervenções, desilusões que por ventura / a gente vive e chora”... E sua “trans-versão”: importa a cidade, a região, importa a classe, pois só ela pode ser antirracial, antiviral, o coração da paz, anti-divisão, anti-intervenção, anti-desilusão, de gente que apenas quer viver e não chorar...
E para viver, chorar ou não-chorar, é preciso um lugar, aquele que a poesia traz, que faz ver, que faz sentir...
2.
Erva-mate
Sapeca a erva-mate minha mãe,
Deixa o pilão por minha conta,
Histórias a gente vive e desmonta,
O que de ruim nos trouxe o dia.
Enquanto isso, vou separando,
O que é pro mate,
E o que é para o tereré,
Daquele jeito simples,
Como você quer.
Sapeca outro galho minha mãe,
Daquele jeito antigo,
Vou fazendo minha parte,
Com esse cheiro amigo.
O mate nos reúne,
Em mais uma madrugada,
Tereré antes do meio dia,
Em casa, ou naquela estrada.
Obrigado
minha mãe,
Por mais esta tradição,
Coisas que a gente guarda,
Aqui dentro do coração!
(pág. 111)
O poema “Erva-mate” é, para mim, aquele que mais me atravessa! Conjuga lugar, afeto, planta de chão, coisa colhida e moída, esverdeada, tomada quente ou fria, aconchego, manhãs, tardes e meios-dias, uma casa, uma estrada... E um coração que só o é assim porque, justamente, reminiscência de um lugar, de um território: em “Erva-mate” toda uma geografia se manifesta... e onde tinha-tem erva-mate tinha-tem guavira, ipês... tudo o que serve para fazer “geopoesia”.
3.
Em “Outras vidas”, alguém diz, “Vivo outras vidas”... (pág. 124)
A poesia se desdiz: ela vive a vida. A vida é sempre “a minha vida”, “a nossa vida”!
Como em “Erva-mate”, acima, é todo um “auto-território” que vive, da casa, da mãe, do gosto, do tempo que passa, do tempo que fica.
4.
“Se queres ser universal, começa por pintar tua própria aldeia”, escreveu León Tolstoi...
Porque, podemos dizer, é uma ilusão ser universal, ou melhor, é além de tudo uma prepotência, pelo simples fato de que a “universalidade” é desconsiderar toda a multiplicidade de tempos-espaços, pois cada momento e lugar são únicos, com ou sem “globalização”.
Como haver, então, lugar universal, casa universal, mãe universal, coração universal, por exemplo? Como haver guavira universal, ipê universal, corpo, sangue, abraço... universal?
Sim, ser universal é, também, falar da erva virada mate, virada tereré, de uma erva originária de um lugar, de um tempo, que se refaz em cada novo mate, em cada novo tereré.
5.
Antonio Carlos,
Quando li o título do livro, pensei: “será a usina velha de Dourados?”
Não, não era, não é...
Como escrevi acima, impactou-me uma poesia-território que se sobressai em meio a um mundo inteiro, às vezes, um mundo tão monolítico, tão o mesmo do mesmo...
Nos pedaços que sublinhei, também acima, me chega uma poesia da vida que é sempre também um lugar, um território, um tempo: a guavira, a casa, o caminho...
Se pensarmos nos grandes clássicos da literatura, em especial romances, duas características se sobressaem: dramas/tramas são sempre localizados, como em Cem Anos de Solidão, Mrs. Dalloway, Dom Casmuro e Crime e Castigo; e, a personificação narrativa, ou estilo literário, que faz da obra algo único, exemplar – ou um exemplo sem exemplo.
Fui envolvido, em Usina, por aquilo que pode ser o mais simples, como as coisas de um caminho, de uma casa, de um lugar.
Obviamente toda construção literária é sempre ficcional, mas é também difícil desconsiderar que cada palavra, verso ou poema seja “a-temporal” ou “a-espacial”, ou mesmo “a-vida”, “fora da vida”, “aquém da vida”...
Assim, se tudo aqui fosse um pedido, ele seria mais ou menos assim: “continue ajudando-me a viver territórios cada vez mais parecidos com a vida, seja a vivida, seja a inventada”.
Obrigado!
Dourados, 5 de setembro de 2024.
Prof. Jones, UFGD