Filho de mãe Guarani e pai da etnia Terena, o douradense Almires Martins Machado, 54, assumiu recentemente vaga como professor visitante na UFPA (Universidade Federal do Pará).
Ele é o primeiro da Federal do Pará a tomar posse em cargo de docente através de concurso público específico para indígenas do Brasil e residentes em outros países.
A assinatura de documento no início deste mês coroou uma história de vida marcada por desafios em sala de aula, quando ainda era criança, dificuldades vivenciadas quando ainda trabalhava como cortador de cana e racismo enfrentado em sua trajetória acadêmica.
Pensando na homenagem ao Dia do Professor, celebrado nesta sexta-feira (15), o Dourados News foi até a casa de Almires, na Aldeia Jaguapiru, localizada na Reserva Indígena de Dourados, para conhecer o percurso do primeiro professor indígena da faculdade de Direito da UFPA.
Em decorrência do período de pandemia de coronavírus, Almires está atuando a distância em atividades do Instituto de Ciências Jurídicas do Programa de Pós-Graduação em Direito e na Clínica de Direitos Humanos da Amazônia da Federal do Pará. Ele pensa em se mudar para o Norte do país no início do próximo ano.
‘A cavalo’
Almires Martins Machado ainda mora a 300 metros do local exato em que nasceu na Jaguapiru em 1967.
Ao Dourados News nesta sexta-feira (15) contou diversas histórias sobre sua ambígua vivência, primeiro como indígena Guarani-Terena e segundo como estudante e pesquisador nas escolas e universidades em que já frequentou.
Quando criança, ele recorda que haviam dias em que ia a cavalo até a Escola Estadual Menodora Fialho de Figueiredo. “Parece surreal falar isso atualmente”, pontuou.
Por lá, descobriu o gosto pelos estudos e criou laços com crianças não indígenas.
“Quando chovia eu montava em um cavalo que meu pai me deu e ia para escola. Comecei a frequentar a casas das crianças e chamar elas para conhecer minha casa na Aldeia. Foi criando uma amizade”, contou.
Por outro lado, Almires, mesmo sendo apenas uma criança, tinha que lidar com os primeiros desafios impostos por uma sociedade preconceituosa, ou melhor, profundamente racista.
“Foi na sala de aula a primeira vez que senti o peso do que hoje chamam de racismo institucional”, contou ao lembrar das dificuldades que tinha para aprender a falar a língua portuguesa.
Era só o começo da saga. Ele se formou no então nível educacional ‘científico’ em 1985 na Escola Estadual Presidente Vargas, que depois viria a ser chamado de Ensino Médio.
Jovem, sem ter a oportunidade de pensar no que ‘queria fazer da vida’, foi trabalhar em canaviais, assim como outros 10 mil indígenas naquela época na região de Dourados.
‘Todos iguais?’
As empreitadas que foi obrigado a enfrentar entre 1985 e meados 1997 para ajudar nas despesas de casa foram deixando a mente do jovem Almires cada vez mais inquieta. Foi neste período que, por necessidade, começou a se interessar pela área do Direito.
“Eu observava a forma que éramos tratados. A Constituição dizia que todos os brasileiros eram iguais. Mas nosso trabalho era análogo a escravidão”, lembrou.
Apesar da Constituição completar dez anos de vigência em 1998, os direitos trabalhistas não se aplicavam aos indígenas que atuavam em meio as plantações de cana, distante das cidades.
Foi também neste período que um grupo no qual Almires fazia parte decidiu bater de porta em porta nas universidades de Dourados no final dos anos 1990 para pedir que fossem abertas vagas nos cursos de faculdade, específicas para população indígena.
Depois de inúmeras frustrações, os anseios foram atendidos pela então Socigran (Sociedade Civil de Educação da Grande Dourados), atualmente Unigran (Centro Universitário da Grande Dourados), que abriu as portas direcionando vagas para indígenas.
Era uma espécie de embrião do que viria a ser chamado, anos depois, de “ações afirmativas” e foi dessa maneira que Almires entrou no “elitista” do curso de Direito, dando início a sua trajetória acadêmica.
Professor Almires no cômodo em sua casa usado de sala de estudos. - (Crédito: Hedio Fazan/Dourados News)
‘Folha em branco’
Logo no primeiro ano de faculdade, o estudante indígena percebeu o tamanho dos obstáculos que havia pela frente. Tanto que foi alvo de piadas por parte de outros alunos que questionavam a legitimidade de sua vaga no curso de Direito.
Em um dos episódios, diante da informação de que haveria um concurso de oratória, Almires escutou de um de seus colegas: “’Ei índio, consegue entrar aí e ficar em último?’ Eu tomei aquilo por desafio e me inscrevi no concurso”, contou.
Ele acabou passando pelas eliminatórias e sendo selecionado para participar da final do concurso de oratória realizado no ginásio de esportes com presença de professores locais, jurados da USP (Universidade de São Paulo) e cerca de mil alunos como expetadores.
O jovem estudante optou por ser o último a discursar. Aproveitou para observar como os demais colegas agiam e como “as coisas funcionavam”. “Eu vi que todos levavam uma folha com a fala escrita, então corri para arrumar uma folha de papel A4”.
Por fim, seu discurso chamou a atenção dos professores, principalmente da USP, e ele acabou entre os primeiros colocados.
“Gostaram tanto que vieram me pedir a folha de papel que estava comigo dizendo que iriam publicar o discurso. Entreguei o papel. Foi quando perceberam que estava em branco. Eu havia subido as escadas sem ter ideia do que iria falar para toda aquela gente”, recordou nostálgico.
Cultura e educação
Depois de se formar em 2004, Almires Martins Machado fez mestrado em Direitos Humanos e doutorado em Antropologia, na UFPA. Em sua tese defendida em 2015 o pesquisador contou a história da migração Guarani, sobre grupo que saiu de Missiones, na Argentina, e percorreu parte do continente até chegar ao Pará.
Assim como o tema de sua tese foi decidido pela comunidade indígena do Pará, a escrita também contou com a participação desta população com o objetivo de apresentar a história a partir do ponto de vista do povo Guarani.
A saga do menino indígena da Aldeia Jaguapiru ganhou novo capítulo no dia 7 de outubro de 2021, quando tomou posse como professor visitante na UFPA, considerada uma das principais universidades do país.
Analisando todo este processo vivido sempre com um pé nas aldeias e outro nas universidades, Almires não poupou críticas ao sistema educacional que esteve vigente por centenas de anos, com resquícios que insistem em permanecer nos livros escolares.
“Desde que a escola chegou com os jesuítas no que hoje é chamado de Brasil ela foi um mecanismo de apagamento cultural. Separavam as crianças dos pais”, explicou.
Com isso, a literatura produzida sobre o povo guarani caracterizava-os como ‘burros’, ‘incapazes’, que não gostam de trabalhar, um ‘estorvo ao progresso’. “A gente via isso sendo reproduzido nos livros didáticos”.
“Por isso penso que a relação da escola com a cultura indígena foi sempre complexa e tumultuosa, as vezes até raivosa, se pensarmos no conflito que causou a implantação das cotas sociais, por exemplo. Nunca foi uma relação de bons amigos”, disse.
Ele ressalta que esta realidade mudou, pelo menos em parte, após a sansão da Lei 11.465/08, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Porém, o agora professor universitário Almires ressaltou que, para além da legislação, existe ainda uma urgente necessidade de “mudança substancial no pensamento”, sobretudo nas diretrizes educacionais usadas para formar cidadãos.
Necessidade de mudanças que devem fazer parte dos desafios que ainda estão por vir.
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