Há muito tempo se prenunciava meu interesse por outras paragens.
Na época de estudante de arquitetura em São Paulo, eu já frequentava os
Festivais de filmes estrangeiros, quando me deparei com Heimat!
Heimat, de Edgar Reitz, tinha uma duração, se não me engano de 4 dias,
posteriormente vimos José Celso fazer no teatro *as bacantes, com uma
duracao de 6 horas, mas isso nunca foi comum.
Filme alemão é um negócio diferente, e quem não conhece um pouco do
jeitão germânico, fica comendo mosca.
Eu não entendia nada, não acontecia nada no filme, não tinha o timing que
somos acostumados, os diálogos não faziam sentido para mim, enfim um
verdadeiro tédio.
Mesmo eu não entendendo nada, seguia firme, na esperança de que em
algum momento o negócio mudaria e eu então iria entender do que se
tratava.
Mas, minha amiga baiana que estava comigo, não tinha a mesma
paciência que eu, e resmungava meio alto:
Mas que bosta!
Nossa, o que que eles estão falando mesmo?
Ä lwijäslrkjvhsöovh?
Eu morria de vergonha num cinema quase vazio, com um grupo seleto de
críticos, o filme era Cult! No belo e antigo, hj fechado, Belas Artes.
Acabei saindo do cinema devido a pressão psicológica e já la fora ela
continuou dizendo; como alguém poderia fazer e apresentar um filme
daqueles, aborrecido e preto e branco ainda por cima!
Quando a diferença de mentalidade é um abismo, o melhor é nos calarmos.
Acabei por terminar de ver o Heimat na Alemanha, anos depois, agora em
paz, podendo entender toda a saga da história de uma familia alemã.
Mas a minha amiga baiana era minha visita, e a tortura continuou no dia
seguinte, quando fomos ver Lúcio Costa num Evento no Anhembi,
entregando prêmios para arquitetos brasileiros.
Lucio Costa é fenomenal, a própria presença dele é fascinante, toda frase
dita é inspiradora, sua egrégora ou seja lá o que for que o acompanha, é
elevada, luminosa, grandiosa.
Eu procurava escutá - lo por entre os comentários que minha amiga não se
continha em fazer.
tadinho…
nossa, como já está velhinho…
coitado, já viveu bastante…
Misericórdia! Pensava eu, de novo envergonhada.
Porque ela não se calava?
Sempre paguei mico em eventos, que por força da natureza, não são
apropriados a todos gostos.
Isso continuou pelo mundo afora.
Em Colônia, nos anos 90, eu frequentava a cena local e a sub celebridade
do momento era um bailarino brasileiro, que fazia uma réplica de Ismael
Ivo, com aquela saia vermelha e tudo mais.
Resolvi ir ao espetáculo e levar meu marido, na época eramos recém
casados e eu ainda arriscava convidá-lo para meus programas.
Mas eis que nos primeiros 10 minutos do espetáculo, o bailarino resolveu
recriar um ambiente brasileiro, onde alguns lambizóis beliscavam seu
calcanhar e ele os coçava com um dos pés.
Foi suficiente para o alemão.
Te espero no café!
E saiu procurando ser invisivel. Não voltou nem na pausa do espetáculo,
mesmo assim foi melhor do que ficar falando no meu ouvido - pensei.
Fui também ver Ismael Ivo em Weimar, onde ele era diretor - agora
dançando Mefistoles de Göethe o grande e mais respeitado de todas
celebridades intelectuais da Alemanha - Wolfgang von Göethe.
O público era 100% alemão, intelectuais, artistas de primeira grandeza e
cidadãos da schikeria local - todos trajando passeio completo.
Göethe sendo mostrado por um brasileiro - Ismael Ivo dançava Mefístoles
a dualidade da natureza humana - grande literatura do maior entre os
maiores.
Foi perfeito, dessa vez ele, meu marido, não deixou a sala.
Mas, confesso que meu gosto por Artes, por vezes distancia algumas
pessoas.
E isso, sem falar nas minhas idas a Pina Bausch em Wuppertal, levando a
familia alemã, o que por si só, dá uma história completa!
Eu, por outro lado, continuo visitando meus espetáculos, agora sózinha.
Esse povo atrapalha muito minha concentração!
Ana Cavalheiro - Arquiteta. Cronista. Mulher
Vila São Pedro - Brasil
Grevenstein- Germany
Dicionário:
Heimat: Terra Natal em português.
Colônia: cidade a beira do Reno. Köln em alemão
Timing: tempo ou ritmo - em inglês.
Cult: que representa cultura- culto - Contemporâneo.
Göethe: Johann Wolfgang von Göethe, o mais amado escritor alemão cuja
obra é respeitada mundialmente.
Edgar Reitz: cineasta alemão que fez o filme mais longo da história alemã.
Pina Bausch: Coreógrafa alemã - criadora do Tanztheater - diretora do
teatro de dança da cidade de Wuppertal.
Lambizóis: Musquitinhos brasileiros, quase invisiveis, que nos beliscam
levando quase a insanidade, em noites quentes de verão.
Weimar: A república de Weimar - como ficou conhecida - foi de 1918 a
1933 a primeira tentativa de democracia na Alemanha. Não conseguiu se
impor ao meio do caos, fome e miséria no pós guerra da primeira guerra
mundial, abrindo caminho para o governo de extrema direita de Adolf
Hitler, que chegou prometendo bem estar e orgulho, transformando o país
em poucos anos, em ruinas e cinzas e um povo dilacerado pela guerra.
Schikeria: Classe social abastada, não necessariamente intelectuais com
formação cultural.