Na busca de novos métodos para explicar o comportamento humano ao longo do tempo, ou seja, da história, eu estudava o conceito de imaginário social (algo ligado e confundido àquilo que se convencionou chamar de inconsciente coletivo). Nessa época, início dos anos de 1990, apareceu-me a oportunidade de frequentar um curso chamado “Doença e Imaginário”, ministrado pelo professor Ítalo Tronca na Universidade de São Paulo. O curso versava especialmente sobre o imaginário criado em torno da lepra (hanseníase), doença que provocava o isolamento total dos portadores, tal o seu alto risco de contágio. Bem, esse isolamento foi possível apenas após a construção de hospitais especializados para receber os portadores desse mal, pois quando minha mãe era criança com os seus dez anos, por volta de 1930, ainda vagavam, pelo Brasil afora, grupos de leprosos balançando seus sinetes para anunciar a sua passagem. As pessoas corriam, trancavam-se em suas casas e a minha própria mãe certa vez foi acudida em Jaú por uma desconhecida que se trancou com ela em sua casa até que o sinete anunciasse que o grupo já havia passado.
Não tanto quanto os leprosos, mas também discriminados imensamente eram os tuberculosos. Na década de 1960 funcionava ainda em Catanduva o Hospital Emílio Carlos, somente para abrigar tuberculosos. Havia no sanatório, doado pela Fundação Rockefeler e que hoje abriga o Hospital Escola do curso de Medicina da Fundação Padre Albino, duas enormes edificações isoladas, uma para os homens e outra para as mulheres,
Felizmente nos dias atuais tanto a hanseníase quanto a tuberculose são moléstias curáveis, cujo tratamento não requer sequer internação hospitalar.
Assim como a lepra e a tuberculose, até pouco tempo atrás o câncer também era tratado como metáfora. Fulano está com doença ruim. Beltrano tem uma ferida brava, e assim por diante.
Sobre essas metáforas, o curso que frequentei “doença e imaginário”, proporcionou-me a oportunidade de conhecer uma obra da escritora norte-americana Susan Sontag (falecida em 2004): “a doença como metáfora”. A autora, acometida pela moléstia, lançou a obra no início dos anos de 1980 e teve a coragem de examinar as metáforas existentes em torno do câncer, ora como doença romantizada, ora, demonizada.
Cerca de trinta anos após essa obra ter sido lançada, já não existe absolutamente mais nada romantizado ou demonizado. Qualquer pessoa sabe se está ou não acometido pelo mal e a maioria conhece exatamente as possibilidades de cura ou da sobrevida que lhe resta, conforme o caso.
Não há mais espaço para as metáforas sobre as doenças. As ciências médicas evoluíram vertiginosamente. Aparelhos moderníssimos e exames minuciosos são capazes de detectar a doença ainda embrionária. Ninguém mais é iludido, os hospitais não camuflam os seus nomes, são específicos para o tratamento de câncer e toda a cidade de porte médio procura edificar o seu.
Não sei se no passado as pessoas morriam com câncer sem que a moléstia fosse diagnóstica ou se ela se alastrou no mundo atual pelas condições de vida que levamos. Creio mais nessa última hipótese.
Nosso bispo diocesano, Dom Redovino, escreveu recentemente um artigo no jornal “O Progresso” com o emblemático título: “Prepare-se, todos vamos morrer de câncer”. O bispo adverte que o câncer nos atinge com os produtos que nos chegam à mesa, com a água que tomamos contaminada por agrotóxicos, pelo sedentarismo, obesidade e pelo estresse.
O estresse é a somatização do trabalho excessivo, com as contas vencidas, com o trânsito caótico, com a frustração, a desilusão, a intolerância, enfim, males acarretados por um mundo maluco no qual nos sentirmos sós, mesmo estando rodeados nas ruas, nos ônibus, nos metrôs, por centenas ou mesmo milhares de pessoas, alheias, ensismemadas, enclausuradas, encasuladas, com medo, cansaço e incerteza.
Além do estresse eu acrescentaria como ingredientes diretamente ligados ao aparecimento do câncer, as desilusões e desgostos que a vida contemporânea nos acarreta, as mágoas que nos corroem as entranhas e o ódio oriundo de ressentimentos acumulados.
Não obstante o progresso das ciências que cuidam de nossa saúde, o câncer continua agredindo a sociedade contemporânea, levando ao sofrimento não somente quem tem a dor na própria carne, mas também os familiares que padecem tanto psicologicamente quanto pela mudança em seus afazeres, pelos cuidados que dispensam ao enfermo.
O câncer deixa de ser tratado como metáfora, mata-nos, mas se por um lado estamos conscientes dessa realidade nua e crua, por outro, continuamos a nos autodestruir. Estudo recente realizado por uma enfermeira australiana constatou entre 19 doentes terminais que o maior arrependimento deles era ter trabalhado demais. Para que?
Creio, sinceramente, que se ao invés de inventarmos aparelhos cada vez mais sofisticados para combater o câncer, conseguíssemos edificar uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais igual, teríamos melhores resultados. A solidariedade, o perdão e, principalmente o amor ao nosso semelhante, seriam muito mais eficazes que as máquinas para substituir o câncer por saúde.
Suas críticas são bem vindas
Wilson Valentim Biasotto*
biasotto@biasotto.com.br
* Membro da Academia Douradense de Letras; aposentou-se como professor titular pelo CEUD/UFMS, onde, além do magistério e desenvolvimento de projetos de pesquisas, ocupou cargos de chefia e direção.